Explorando o Microbioma Ocular: Uma nova fronteira em oftalmologia

Excerto
"O olho, outrora considerado estéril e imunoprivilegiado, está enredado num cruzamento sistémico entre os inquilinos microbianos e a saúde ocular."

Na sua edição de setembro de 2025, O oftalmologista publicou um artigo de fundo em coautoria com Prof. Farhad Hafezi e Dr. Mark Hillen que desafia os pressupostos de longa data sobre esterilidade e imunidade no olho. Apresenta uma tese arrojada: a próxima revolução da oftalmologia pode vir não de moléculas artificiais, mas de micróbios que vivem dentro de nós e à nossa volta.

O artigo apresenta o eixo intestino-olhoO livro de referência da Sociedade Brasileira de Patologia Ocular (SBPC), que mostra como o microbioma ocular influencia condições tão diversas como a doença do olho seco, o glaucoma, a uveíte, a DMRI e a retinopatia diabética. A narrativa familiar do olho como um órgão isolado e estéril é desmantelada, substituída por uma imagem de constante diálogo microbiano entre o intestino, a superfície ocular e os compartimentos intra-oculares.

Um exemplo notável é o conceito de lacriomaA comunidade microbiana do sistema de drenagem lacrimal. Outrora considerado como uma simples canalização, o sistema nasolacrimal surge como um microecossistema onde as alterações no equilíbrio microbiano podem determinar o sucesso ou o fracasso da cirurgia. Da mesma forma, em disfunção das glândulas meibomianasA explicação habitual da obstrução da glândula é reformulada: as bactérias na margem da pálpebra podem estar a moldar a saúde da glândula e a estabilidade da superfície ocular.

O artigo também questiona o pressuposto de esterilidade na câmara anterior. A evidência de ADN microbiano em amostras de humor aquoso sugere que os organismos residentes podem influenciar o tónus imunitário e até contribuir para a fisiopatologia do glaucoma. Igualmente provocadora é a evidência que liga as bactérias intestinais à uveíte autoimune, na qual os micróbios podem "treinar" as células T para atacar os antigénios da retina.

Nestes exemplos, há um tema comum: a disbiose - o desequilíbrio microbiano - pode fazer pender a balança da saúde para a doença. Esta perspetiva não exclui os mecanismos estabelecidos, como a pressão intraocular no glaucoma ou a desregulação do complemento na DMRI, mas acrescenta outra camada: a possibilidade de as comunidades microbianas, moldadas pela dieta, ambiente e medicação, actuarem como co-autores ocultos da doença.

A nível terapêutico, o horizonte é igualmente desafiante. A modulação do microbioma através de probióticos, prebióticos ou mesmo de transplantes fecais tem-se revelado promissora em modelos experimentais. Mas os riscos - inflamação não intencional, infecções ou respostas imunitárias imprevisíveis - são reais. O artigo adverte contra a tradução prematura, salientando a necessidade de ensaios rigorosos e multiómicos antes da adoção clínica.

Para a oftalmologia, esta mudança é profunda. A saúde já não pode ser equiparada à esterilidade, nem a doença à contaminação. Em vez disso, a atenção pode virar-se para simbiosereconhecendo que o olho faz parte de uma ecologia microbiana muito mais vasta.